sábado, 15 de janeiro de 2011

psicose maníaco-depressiva

(porque algumas - raras - vezes os eufemismos são completamente dispensáveis)


"É como se minha vida fosse magicamente dirigida por duas correntes elétricas: contente positiva e desesperançada negativa - a que estiver em ação no momento domina minha vida, inunda-a. Agora estou inundada de desespero, quase histeria, como se estivesse sufocando. Como se uma grande coruja musculosa estivesse sentada em meu peito".
Sylvia Plath


a primeira vez que tive contato externo próximo com a psicose maníaco-depressiva (ou o transtorno bipolar de humor, pra ficar mais leve) foi quando meu tio teve um surto, no ano passado.
não que fosse assim tão próximo - convíviamos muito pouco e eu nunca estive presente em nenhuma crise que apresentou. pelo contrário, todas as vezes que o via pensava em como era um cara legal, divertido, como ele parecia entender a vida de um jeito certo e simples. 'o tio Serginho é doido', comentava entre risadas quando sabia de algo excêntrico que ele fez na adolescência ou agora mesmo, depois de anos de casamento (do qual fui daminha, muito linda, modéstia à parte) e três filhos.
sempre soube que ele era 'diferente'. que tomava remédios controlados desde a infância. que chegou até a 'ver coisas'. que gostava de raul seixas e legião urbana, de um baseado aqui e encher a cara ali, de brincar com os sobrinhos e dar risadas gostosas. que já tinha dado uns tapas na mulher (que devolveu com a mesma força, aliás), que seus dois filhos eram hiperativos.
o que eu não sabia é que aquele surto recente e assustador, aquele que fez a mulher pegar os filhos e sair correndo de casa, que fez com que ele fosse afastado do trabalho - aquele surto foi uma psicose resultante do transtorno que ele tem.
o transtorno bipolar. o mesmo transtorno que foi diagnosticado em mim, anos antes, quando tudo que eu pensava ter era transtorno alimentar. 'esse médico é louco', disse e nunca mais voltei. curioso como o meu tio ser 'doido' e o meu médico ser 'louco' tinham sentidos tão diferentes mesmo que os adjetivos sejam sinônimos.
- não, mãe, eu tenho certeza que ele deve ter outra coisa. transtorno bipolar não é isso, não faz isso com a pessoa. ele deve ser esquizofrênico. é, é isso, ele é esquizofrênico, não é?
- a tia Odete disse que o médico diagnosticou transtorno bipolar. esquizofrenia é por sua conta.
- fala pra ela me ligar. vou ajudar a arrumar tratamento gratuito. e me fala o nome dos remédios, vou conseguir de graça pra eles também. não esquece de pedir a dosagem. e de perguntar como eles estão... ela, os meninos, o meu tio.

ajudei no que pude. achei clínicas de tratamento gratuito, com psiquiatra, psicólogo e terapia ocupacional. achei farmácia do governo que dá os remédios, é só levar a receita e uma declaração do psiquiatra. não achei foi consolo - não pra mulher do meu tio, tampouco pra ele. não achei consolo pra mim mesma.
'definitivamente eu nunca tive transtorno bipolar. eu nunca fui psicótica. nunca vou terminar minha vida assim, afastada do trabalho, do convívio social e familiar', era só o que eu conseguia pensar todas as vezes que alguma notícia nova sobre meu tio chegava até mim.
e então lembrei daquela menina estranha que conheci em meio à dietas e restrições alimentares, a Bárbara. nos parecíamos muito e nos demos muito bem até começarmos a competir. a adrenalina é o alimento da euforia. lembrei que ela parecia forte, mas era completamente desestruturada. destroçada. e tinha o mesmo jeito de quem entende a vida do jeito certo que o meu tio tem, só que de um jeito mais complexo. a simplicidade nunca passou por ali.
lembrei de quando fiquei sabendo que a Bárbara ia se internar, por vontade própria e um pouco de empurrão da família cansada de sustentar o peso de um transtorno que era dela. 'ela é maluca. e burra. quer chamar atenção', julgamento infeliz o meu. se internar é o maior grito de desespero que alguém pode dar.

quando pela segunda vez veio o diagnóstico da psicose maníaco-depressiva, não me assustei tanto assim. já conhecia a "dor em seu estado bruto" de longas temporadas e várias passagens. já sabia voar e me alimentar de luzes e cores em plena euforia desenfreada. já admitia que aquilo não era comum, que não era emocional, que não passaria com o tempo. admitia que precisava de ajuda. que era algo químico e poderia me matar, ou me transformar em tio Serginho ou Bárbara - poderia me enlouquecer.
e eu não quero. não quero terminar internada, desesperada, sendo um peso na vida das pessoas. não quero desperdiçar tanta força e tanta energia que trago aqui dentro. não quero me matar, Deus, como eu não quero fazer isso. não quero recorrer ao gás do fogão como Sylvia Plath, sem mais saídas, fez.
eu quero ser uma sobrevivente. ainda que isso me faça ser cobaia de remédios, ser incompreendida por tantos médicos (e pior, pela minha própria família), ser taxada de fraca ou de louca.
fraqueza e loucura é fugir, como tantos fazem e eu tanto fiz. não dá pra fugir de algo que compõe boa parte do que você é.
não vou mentir e dizer que tenho esperanças de que um dia terei uma vida comum. não, eu sei que não terei. que vou depender dos remédios, das terapias e das mãos amigas. que vou sentir falta dos vôos da mania e vou sentir medo, todos os dias, que o abismo da depressão volte e me busque.
mas eu vou tentar. porque, afinal de contas, o que se há de fazer senão continuar vivendo?


"O maior pecado? Abandonar-se."
Madre Teresa de Calcutá

Um comentário:

Kine disse...

"O maior pecado? Abandonar-se." MAdre Tereza, talvez com pouco estudo perto de tantos filósofos que eu já estudei e tanta sabedoria.
abandonar-se é pecado, é deixar de lado um presente divino. Só o fato de tentar já o torna mais forte do que pensa. E ajuda nunca vai faltar. Como diz algum amigo seu "confia e entrega".